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15 de out. de 2010

A LÍNGUA E OS NÚMEROS

Como a evolução do sistema numérico permitiu a representação gráfica e linguística de cifras inimagináveis

Alegando ter sido mal atendido, Dalton Chiscolm entrou em outubro com uma ação na justiça norte-americana contra o Bank of America exigindo como indenização a estratosférica quantia de um septilhão de dólares, ou o equivalente ao algarismo “um” seguido de 24 zeros. Só para ter ideia, esse valor corresponde à economia de 21 bilhões de planetas Terra. A curiosa notícia nos faz pensar, no entanto, que a demanda do cliente, por absurda que seja, só é possível porque nosso sistema de numeração permite pensar e representar, tanto gráfica quanto linguisticamente, essa cifra e outras ainda maiores.
Isso nem sempre foi assim. Nossos ancestrais pré-históricos não tinham necessidade de contar nem precisavam de palavras para números, exceto um, dois, no máximo três. Essa situação permanece entre povos primitivos: o tupi tinha numerais até cinco, e o pirahã, da Amazônia, só conhece um e dois. Não por acaso, a palavra “três” é da mesma etimologia da preposição latina trans (“além”). Ou seja, originalmente os números eram um, dois e o resto.
O fato de muitas línguas não terem palavras para números além de três, quatro ou cinco se deve à diferença que existe entre o senso numérico, isto é, a capacidade de estimar a quantidade de elementos de um conjunto, e a contagem, que é a correspondência, um a um, entre objetos de dois conjuntos. Nossa capacidade estimativa não vai além de quatro ou cinco; com quantidades maiores, somos obrigados a contar.
Histórico
A necessidade de contar surgiu há 10 mil anos, com o advento da agricultura. Para cultivar o solo, era preciso contar o tempo, as estações, as fases da Lua… Além disso, era preciso controlar o rebanho para que nenhuma ovelha se perdesse ou fosse roubada. Para isso, os pastores guardavam pedrinhas dentro de um saco de couro, uma para cada ovelha. Ao final do dia, eles tinham como saber se alguma não havia retornado do pasto: bastava que houvesse mais pedras no saquinho do que ovelhas no rebanho. Tanto que “cálculo” vem do latim calculus (pedrinha).
A maioria dos antigos sistemas numéricos se baseava na primeira “calculadora” de que o homem dispôs: os dedos das mãos. Por isso, esses sistemas eram, em geral, decimais, embora houvesse sistemas de base 16, 33 e mesmo 60 (os 60 segundos do minuto, os 60 minutos da hora e os 360 graus da circunferência provêm do sistema sexagesimal dos babilônios).
Antes mesmo da invenção da escrita, línguas como o indo-europeu, 4 mil anos antes de Cristo, já retratavam nos nomes dos números a base 10. Um exemplo disso pode ser visto analisando os numerais do grego e do latim, duas línguas de origem indo-europeia. Os numerais de 1 a 10 são palavras primitivas, ao passo que as dezenas 20, 30 etc. e os valores intermediários entre elas são termos compostos ou derivados dos numerais primitivos (ver quadro abaixo).
A ETIMOLOGIA DOS NUMERAIS
NUMERAL
GREGO
LATIM
1
Heís, mía, hén
Unus, uma, unum
2
Dúo
Duo, duae
3
Treîs, tría
Tres, tria
4
Téttares
Quattuor
5
Pénte
Quinque
6
Héx
Sex
7
Heptá
Septem
8
Októ
Octo
9
Ennéa
novem
10
Déka
Decem
11
Héndeka
Undecim
12
Dódeka
Duodecim
13
Treiskaídeka
Tredecim
20
Eíkosi
Viginti
30
Triákonta
Triginta
40
Tettarákonta
Quadraginta
50
Pentékonta
Quinquaginta
100
Hekatón
Centum
200
Diakósioi
Ducenti
300
Triakósioi
Trecenti
Origem das palavras
Por exemplo, “onze” é héndeka em grego e undecim em latim, literalmente “um” mais “dez”. “Doze” (grego dódeka, latim duodecim) é “dois” mais “dez”, e assim por diante. Por isso mesmo, 22 se diz “vinte e dois” em português, isto é, “vinte” mais “dois”.
O numeral correspondente a “vinte” era eíkosi em grego clássico (eíkonti em grego arcaico) e viginti em latim. Ambos provêm do indo-europeu wei (“dois”) + dkomti ou dkmti (dual de dekm, “dez”). O grego triákonta e o latim triginta pressupõem o indo-europeu tria (“três”) + dkomta ou dkmta (plural de dekm). O grego hekatón (“cem”) resultou de hén katón, “um cento”, de onde se depreende que “cento” era katón em grego e centum em latim, ambas, palavras resultantes do indo-europeu dkmtóm, derivado de dekm. Ou seja, dez vezes dez.
Métodos distintos
O problema é que os métodos de notação numérica dos povos da Antiguidade não retratavam fielmente a base decimal e não facilitavam os cálculos. Os gregos usavam as próprias letras do alfabeto como algarismos; os romanos utilizavam os algarismos I, V, X, L, C, D e M e suas combinações, como fazemos hoje para numerar séculos, reis e papas. Como resultado, até uma ferramenta, o ábaco, teve de ser desenvolvida para permitir operações aritméticas.
Embora a língua indo-europeia já contemplasse o sistema decimal em plena pré-história, a notação posicional decimal só foi criada por volta do século 5 da era cristã, no norte da Índia, e o sistema métrico decimal, também chamado de sistema internacional, só foi adotado em 1795. Portanto, nossos antepassados passaram milênios tendo de fazer contas com ábacos quando o sistema mais prático de numeração estava diante de seus próprios olhos – ou melhor, na ponta de sua própria língua.
Fonte : http://www.aldobizzocchi.com.br/

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