Seguidores

5 de fev. de 2015

O ZERO


“Vazios” que revolucionaram a matemática
Por Cristina Caldas

Nós em cordões, cortes em pedras, varinhas de plantas, entalhes em pedaços de ossos são apenas alguns exemplos de métodos de contagem utilizados pelo homem ao longo de sua história. Mas foi a invenção do zero, cuja etimologia remonta ao vazio, que revolucionou o sistema de numeração, impactando inúmeras sociedades, principalmente após o século XIII. O que seria da ciência atual sem o zero?
“A matemática, na antiguidade, era um sistema de contagem e você só conta o que está ali para contar”, explica Ubiratan D'Ambrósio, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). No entanto, chega um momento na história onde escrever números torna-se complicado. O sistema de numeração dos romanos, por exemplo, era extremamente complexo – e não existe algarismo romano para o zero. “Surge então, vindo da Índia, a idéia de uma notação posicional, onde com alguns símbolos você pode escrever qualquer número. O zero passou a ser um instrumento para escrever qualquer número”, complementa D'Ambrósio, que se dedica ao estudo da história e filosofia da matemática.
Usamos a tal “notação posicional” o tempo todo. No nosso sistema numérico hindu-arábico, o número três pode representar diferentes valores dependendo da sua posição: se estiver sozinho significa três unidades, se estiver na frente de outros números, pode representar dezenas, centenas, milhares, e assim por diante. Por exemplo, no número 388, o três está representando três centenas. Hoje em dia pode parecer simples, mas não foi sempre assim.
E como se deu o processo de construção lógica que culminou na notação posicional e invenção do zero? Fabiane Guimarães, que defendeu recentemente a dissertação de mestrado Sentidos do zero pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), sob orientação de D'Ambrósio, fez um passeio pelos diferentes sistemas de numeração desde o ano 5000 a.C.
Começando com os egípcios, que representavam os números por meio de combinações de poucas figuras, como flor de lótus, homem e peixe, Guimarães destaca que “o sistema numérico dos egípcios não necessitava do zero porque os algarismos egípcios tinham valores fixos não importando a posição que se encontrassem”. Por exemplo, o símbolo de um peixe representava sempre o valor cem mil, independentemente de sua posição.
Guimarães explica que os gregos absorveram e ampliaram a cultura egípcia, substituindo figuras por letras, tirando do seu alfabeto símbolos para representar uma quantidade maior de números. Tanto os egípcios quanto os gregos usavam o princípio aditivo: para saber os números que os símbolos representavam era preciso somar os valores dos diferentes símbolos.
Número 87: egípcio, grego, romano e hindu-arábico
Já os romanos, tiveram contato com o sistema grego, mas tinham seu próprio sistema de numeração que utilizava letras relacionadas a quantidades, faziam agrupamentos e utilizavam tanto o princípio aditivo quanto subtrativo (nove em algarismo romano é representado pelo IX, ou seja, dez menos um).
Foram os indianos, influenciados pelas idéias dos babilônios, que criaram o sistema de numeração decimal que utilizamos até hoje, segundo Guimarães. “Os numerais indianos passaram por uma longa evolução”, esclarece Dick Teresi, no livro Descobertas perdidas. Utilizando tábuas de contar divididas em colunas para as unidades, dezenas, centenas, milhares, e assim por diante, os indianos preenchiam as diferentes colunas com os símbolos relativos às diferentes quantias.

No começo, representavam os números através da escrita, onde cada um dos nove números inteiros tinha um nome: eka – 1; dvi – 2; tri – 3; catur – 4; pãnca – 5; Sat – 6; sapta – 7; asta – 8; nava – 9. Assim, explica Guimarães, ainda numa forma verbal e já adotando a base dez, nasceu o sistema de posição indiano. E quando não havia unidade alguma em determinada ordem decimal, utilizaram a palavra sūnya, vazio. Por exemplo, o número 1001 era escrito “eka sūnya sūnya eka”. Nascia o zero indiano.
D'Ambrósio não vê, no momento da gênese do zero, reflexão filosófica alguma a respeito da natureza do zero, do vazio. “Ele aparece como uma conveniência de poder fazer operações mais elaboradas”, diz. Depois disso sim, uma série de biografias do zero surgem, como o livro O nada que existe – uma história natural do zero, de Robert Kaplan. 
Sucesso do zero: uma conjunção de fatores
O zero entra na Europa entre os anos de 900 e 1000 d.C., mas não chama a atenção naquele momento. Já por volta de 1200 d.C., aparece o italiano Leonardo de Pisa, conhecido como Fibonacci, que escreveu o Líber abaci, apresentando o novo sistema de numeração hindu-arábico que havia aprendido com os árabes. Foi o maior best-seller da história, várias pessoas publicaram livros parecidos, segundo D'Ambrósio. O ponto forte da obra era a notação posicional que possibilitava a construção de tabelas de operações, multiplicações, adição que, na época, eram extremamente complicadas. E qual é a explicação para tamanho sucesso?
Considerando as reflexões filosóficas do momento, as observações dos movimentos dos planetas (o que se passa no céu? Céu considerado como a obra mais visível de Deus; Deus estaria se manifestando nesses movimentos, brincando com os astros, jogando-os de um lado para o outro), as contagens dos objetos, com todo esse pano de fundo o sistema de numeração hindu-arábico encontrou solo fértil para se desenvolver e se espalhar. “Uma conjunção de fatores levou ao sucesso do zero”, segundo o matemático. “Existia a necessidade de explicar todos esses fenômenos, ligado a um Deus que você quer entender e isto só foi possível com um sistema prático de medir tudo isto”. Daí a explicação do sucesso do zero naquele momento, naquele lugar.
Ao mesmo tempo, explica D'Ambrósio, esses mesmos padres e esses mesmos filósofos também estavam interessados no desenvolvimento de uma economia que foi fundamental para o desenvolvimento da igreja. Os grandes astrônomos e os grandes filósofos naturais eram também os grandes economistas e entra em jogo toda a questão do mercado, já que uma série de instrumentos – dentre eles, os números – tornavam-se necessários ao desenvolvimento econômico e mercantil.
Daí a explicação para a citação de Tobias Dantzig. Em seu livro Número: a linguagem da ciência, o matemático chama o zero de “uma das maiores realizações singulares da humanidade”. D'Ambrósio concorda: “O que distingue o grande desenvolvimento que ocorreu na Europa foi justamente a fusão de todos os fatores que listei e um instrumento básico para permitir esta fusão foi a numeração, e este sistema de numeração só funciona porque tem o zero”. O que seria de toda a ciência moderna, com suas contagens e observações sem um sistema de numeração adequado? “Sem dúvida o zero foi uma das maiores realizações. Sem ele, estaríamos fazendo conta com pedrinhas”, brinca o matemático.
Não é possível atribuir a criação do zero a uma única cultura e este é um campo controverso dentro da história da matemática. Os maias tinham também um zero, “com uma conotação mística mais explícita, que é o componente do vazio teológico. Deus é infinito, o que acaba criando um vazio sobre o que não é Deus. Este tipo de interpretação, de natureza religiosa, mística, aparece mais explícito no zero maia”, segundo D'Ambrósio.
O conjunto-vazio
A matemática foi impactada também pelo chamado conjunto vazio. “O conjunto vazio desempenha, na teoria dos conjuntos, um papel dual do zero na teoria dos números. Uma de suas maiores importâncias reside neste fato, pois várias propriedades na álgebra dos conjuntos são definidas analogamente àquelas da teoria dos números”, explica o matemático Gauss Cordeiro, da Universidade Federal Rural de Pernambuco.
O campo é árido e de difícil compreensão para os distantes da matemática. “Georg Cantor <CRIADOR da="" teoria="" dos="" conjuntos,="" no="" final="" do="" século="" xix="">era além de tudo um espiritualista, e principalmente o começo da teoria dos conjuntos é de difícil compreensão, pois ele era muito ligado também às reflexões teológicas e filosóficas, o que torna suas idéias mais inacessíveis ainda”, pondera D'Ambrósio.</CRIADOR>
Mas imagine uma sacola cheia de números pares e outra cheia de números ímpares. O que as duas sacolas têm em comum? Nada. É uma explicação simples para o conjunto vazio. D'Ambrósio conta que, com a chegada da teoria dos conjuntos, os matemáticos começam a tentar fazer operações com eles. “Nessas operações, é muito conveniente você representar o que é comum entre dois conjuntos que não têm nada em comum”, explica. A operação intersecção exige que exista um vazio.
Tal conceito é parte da teoria dos conjuntos, teoria esta que impactou muito a matemática. “Praticamente não há hoje nenhum campo da matemática que não tenha recebido o impacto da teoria dos conjuntos”, afirma Howard Eves em seu livro Introdução à história da matemática. De acordo com ele, a descoberta de paradoxos ou antinomias nas bordas de tal teoria foi a última das três crises profundamente perturbadoras que os fundamentos da matemática sofreram, antecedida pela criação do cálculo por Newton e Leibniz e a noção de que nem todas as grandezas geométricas da mesma espécie são comensuráveis.

O conjunto vazio impactou também a probabilidade e estatística. “Sem o conjunto vazio, todos os métodos de contagem (combinações, arranjos e permutações) não poderiam ser a base de toda a teoria da probabilidade, pois o conjunto vazio permite ‘mostrar' que o fatorial de zero é igual a um”, destaca Erick de Paula Crisafuli, mestre em história da matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Assim sendo, explica, as principais distribuições discretas de probabilidades (binomial, poisson, hipergeométrica e geométrica) poderiam apresentar uma falha epistemológica de grande magnitude. Os teoremas de Poisson e de Bernoulli consideram o vazio, pois dependem dos métodos de contagem além das séries de logaritmos.
Tais “vazios” revolucionaram a matemática. Cheios de sentido, se aproximam do quadro O grito de Edvard Munch. “ O grito é a expressão de não perceber nada”, conclui D'Ambrósio.
E, como diria Chico Buarque,

“É sempre bom lembrar
que um copo vazio 
está cheio de ar. 
Que o ar no copo ocupa o lugar do vinho, 
que o vinho busca ocupar o lugar da dor. 
que a dor ocupa metade da verdade,
a verdadeira natureza interior”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Compartilhar